[O Último Virtuoso] Capítulo 1 - Marcas de Sangue

“A sua amizade é como um bonito caco de vidro. A qualquer momento posso me cortar.” PINTO, B.F.

            Que sentimento devastante. É como se a minha vida acabasse a partir de agora, estivesse escorrendo ralo abaixo como aquele resto de água após desligar o chuveiro. Estou diante da pior cena que já poderia ter visto em todos esses meus vinte e um anos de vida. Mergulhado nesse denso e aterrorizante líquido vermelho estão todas as minhas inspirações de vida, o pouco que ainda me dava esperança a cada dia. É o fim. Estou ajoelhado e vejo os olhos fechados dessa doce mulher que me deu a luz e cuidou de mim sempre. Quem me abraçou, fez tanta coisa gostosa pra eu comer, brincou comigo, me deu broncas quando eu precisei e me ensinou a viver. Seu corpo frágil guarda uma força incrível. Suas mãos estão frias, mas estavam sempre quentes quando tocava em mim e me dava um beijo toda vez antes de eu sair. Que tipo de ser humano, se é que posso chamá-lo disso, teve a coragem de me tirar o ser mais precioso e único? Amizade... É algo que se eu tivesse tomado cuidado desde sempre, não teria me conduzido a esse beco do desespero. Eu sei que foi você... Você sabia de tudo. Você entrou na minha vida apenas pra me destruir. Desgraçado! E de pensar que há um ano eu o tinha como amigo. E o que você fez? Apenas a bagunçou toda e derrubou tudo o que eu estava construindo. Nesse momento, me levanto e olho para fora da janela daquele cômodo, no décimo andar de um prédio localizado no meio de uma grande cidade. Lágrimas continuam a escorrer instantaneamente pelo meu rosto e eu não tenho mais controle sobre elas. Desciam como a chuva que caía lá fora. Olho para baixo e vejo várias pessoas andando. Seres humanos. Como podem valer quase nada? Usam uns aos outros para atingir os próprios objetivos egoístas e ambiciosos. Matam e destroem. E sequer sentem algo pelo que fazem. Apenas fingem esquecer e continuam como se nada tivesse acontecido. Meu coração dói. Queria duas coisas nesse momento. Uma delas é impossível, já que é trazer quem eu mais amava de volta. A outra é mais do que possível... Dar a volta por cima de quem me destruiu. Está na hora de assumir a minha verdadeira identidade. Preciso ser quem eu sou. É hora de enfrentar uma batalha. O seu alvo era eu. Logo, não deve demorar muito para que suas ações asquerosas voltem para tentar me atingir. Agora as coisas são diferentes. Aquele que todos conheceram acaba de morrer aqui, junto a quem ele mais amava. E nasce um novo homem. Um homem que não deixará ser enganado por mais ninguém... E que está em busca de... Justiça!



Dias atuais...

Estou dentro de uma das maiores empresas de arquitetura e design da cidade. Caminhando nesses corredores bonitos e cheios de estilo. Consegui o emprego dos meus sonhos. Como ela sempre desejou pra mim... Ora, ora... Estou lembrando novamente. Mas afinal, hoje faz exatamente cinco anos que tudo aquilo aconteceu. Cinco anos que eu tive que me manter calado e quieto esperando as ações da polícia, que nada descobriu. Cinco anos que eu precisei pra tentar consertar minha vida. Cinco anos longe de você... E agora, estou indo trabalhar pra ver se ao menos distraio esses pensamentos atordoantes.

— Leo! Que bom que você chegou cedo hoje — me chama uma mulher de cabelos longos e roxos, vestida com uma calça de seda, salto alto e uma blusa bonita preta com um grande decote, evidenciando seu belo par de seios. Usava batom rosa e aquele negócio que as mulheres sempre passam nos olhos, mas que sempre esqueço o nome.  — Preciso falar com você, honey!

— Se quiser — olho no relógio e noto que ainda faltavam quinze minutos para o expediente começar. — Podemos conversar agora na minha sala.

— Ótimo! Vou só pegar um café pra nós dois e... — ajeita o botão da minha camiseta e aproveita pra passar rapidamente a mão no meu peitoral esquerdo. — Quem sabe até depois do expediente, o que acha?

— Anne, não iremos pra minha casa ou pra sua pra fazer isso. Eu sei que você parece estar quase subindo pelas paredes, mas já conversamos sobre, ou a senhorita já esqueceu? — olho fixamente.

— Você é sempre tão difícil, Leo! Pois bem, vou buscar o café e já te encontro na sua sala pra conversarmos — sai emburrada, mas sem perder a pose de sempre. Observo que dava pra notar o formato de sua calcinha pela calça que cobria suas pernas. Acho que ela realmente estava querendo fazer algo após o expediente e não soube disfarçar nem os detalhes...

Eu me formei em arquitetura há quase três anos e hoje já tenho um emprego em que recebo até bem pra um recém-formado. Ganhei uma sala só pra mim recentemente e têm sido muito proveitosos os dias aqui. Costumo ser assediado pela minha colega de trabalho desde que consegui subir de cargo. Que coincidência, não? Eu já fui apaixonado por ela há muitos anos, mas no momento não gostaria de entrar em tantos detalhes e nem pensar sobre. Ela acabara de entrar em minha sala e até me trouxe um pouco de café.

— Aqui — me entrega o copo. — Saiba que isso é apenas por educação, já que eu não me importo tanto assim com você — cruza as pernas, desvia o olhar de mim e pensa que me engana. Incrível como seu corpo continuava o mesmo, mas só me atraia em momentos onde eu estava com a libido lá em cima.

— Pois bem, obrigado. Agora — experimento o delicioso café doce que ela havia me trazido pra depois continuar o que ia dizer. — O que você queria conversar comigo?

— É sobre uma reunião com um empresário. Eu não poderei comparecer a ela, pois irei ao casamento da minha irmã no dia. Conversei com o chefe e ele disse que eu só poderia caso escolhesse alguém adequado para me substituir e a pessoa aceitasse, é claro. E aí...

— Certo, e aí você quer que essa pessoa seja eu — suspiro —Entendido.

— Você é sempre tão rápido pra entender as coisas, honey! — diz isso com um sorrisinho cínico, típico dela.

— Mas quem disse que eu vou aceitar?

—Não seja tão duro. Já não basta ser em vários sentidos. Ai... Naquele então... — olha para o alto e faz uma expressão de que estava pensando em algo sacana, mas logo toma um gole de café e continua. — Mas é por ser importante que te escolhi! Você é quem vai ganhar todos os méritos no meu lugar, aliás.

— Você sabia que eu tinha reservado a noite de amanhã pra fazer algo? Portanto, não irei aceitar sua proposta, sinto muito.

— Por favor, honey! Não quero perder o casamento da minha irmã. Vai ser do babado!

— Claro, eu te conheço muito bem... Deve ter comprado um vestido novo e está pronta pra chegar desfilando, chamar a atenção de um bando de marmanjo e fazer inveja nas outras mulheres.

— Bem... Talvez — olha para os lados e fica sem muitas palavras.

— Acha que isso é um motivo justo pra te substituir?

— Por favor, faça isso por mim. A reunião é com um membro daquela empresa que financia várias outras, a tal da... Soldi & Successo.

Nesse momento meu coração acelera, comecei a suar frio e olhei com espanto para Anne. Ela tinha mesmo dito aquelas duas palavras? Pedi que repetisse o nome e ela não entende a minha reação. Respiro fundo e até me sinto tonto. Esse lugar... Era esse o lugar!

— Certo. Irei à reunião e assumirei esse projeto. Local e hora?

—Mudou de ideia tão rápido... Mas nem vou ficar te perguntando o porquê, pra você não acabar mudando outra vez — pega uma folha e anota o endereço e o horário que eu deveria estar lá. Logo em seguida me entrega. — Sua reunião será com James Dupont. Disseram-me que ele é bem exigente e costuma recusar vários financiamentos. Seja o mais gentil possível e saiba usar da persuasão. Ele não é alguém muito fácil e lembre-se que será um projeto importante aqui pra empresa.

— Serei — seguro o papel com firmeza.

Anne agradece e se retira. Eu nem estava mais prestando atenção nela faz tempo. Não conseguia pensar em muita coisa. Cinco anos se passaram e já era o momento de agir. Agora eu realmente podia aparecer. Ficaria face a face com ele. Mal consigo imaginar que reação terá ao imaginar que ainda está vivo quem ele já tentou eliminar mais de uma vez. O último virtuoso!

Aquele dia no trabalho foi longo. Fiquei pensativo o tempo todo e voltei para casa só à noite. Chego ao meu apartamento localizado no centro da cidade, sétimo andar. Moro sozinho e deixo tudo o mais organizado possível. Não tenho parentes nesta cidade. Tenho duas pessoas que costumam me fazer algumas visitas. Porém, hoje não era dia delas. Nessa noite, eu gostaria de ficar sozinho e pensar um pouco. Faço um pouco de chá e logo que está pronto, me sento na varanda. Observo todas aquelas luzes e movimentos naquela grande cidade.  Eis que memórias surgem em minha mente. Um flashback daqueles acontecimentos e de como tudo começou. Por mais que possa doer, é bom que eu me lembre deles mais uma vez.

Tudo começou pouco depois que eu entrei na faculdade. Sempre fui um garoto independente e não costumava me ligar facilmente às pessoas. Nunca me importei caso precisasse ficar sozinho. O que aconteceu é que eu fazia poucas amizades verdadeiras, já que evitava ao máximo me aprofundar nelas. Era algo de mim. Mesmo assim, sempre fui um garoto muito sorridente, gentil e que estava sempre disposto a ajudar. O meu primeiro ano no curso de arquitetura havia se passado e eis que acabo conhecendo um novato. Seu nome era Thales. Thales Denford. Um garoto um pouco mais alto que eu, dois anos mais novo, magro e com um olhar estranho. Era considerado de uma bela aparência pelas outras pessoas. Eu mesmo não achava lá essas coisas e ainda por cima não me pareceu muito amigável. Tinha algo estranho nele por trás daquele rostinho. Apesar disso, acabei esbarrando com ele na biblioteca e o ajudei a procurar alguns livros das disciplinas iniciais. Logo após ajuda-lo, acabamos indo para o lado de fora e conversamos. Um ótimo momento, aliás. Típico de quando está se conhecendo alguém. Lembre-se que esse tipo de conversa nem sempre vai definir como será sua relação com a outra pessoa no futuro. Não mesmo...

O tempo foi passando e fomos nos aproximando cada vez mais. Os meus dias naquela faculdade estavam bem diferentes do que costumavam a ser.  Ríamos juntos e notamos que tínhamos muito em comum. Ele me apresentou mais alguns novatos e me divertia muito ao lado de todos. Ajudava ele nas matérias que eu já tinha feito e sempre era muito disposto quando se tratava da amizade. Todavia, estava perdendo o foco de muitas coisas.

Eu já confiava nele e contava várias coisas. Nunca esqueço o dia que estávamos conversando sobre família e comentei sobre a minha mãe. Disse que a amava muito e queria que ela vivesse muitos anos. Sem ela ali, minha base seria totalmente afetada e provavelmente eu não sobreviveria. Ele apenas me ouvia e dizia não sentir o mesmo pela sua. Hoje me arrependo amargamente de ter dito qualquer coisa a ele.

 Tudo seguia normalmente, até que aconteceu uma saída de campo no fim do semestre, onde fomos a uma serra em um final de semana. Parei um momento para observar a paisagem do alto. De repente alguém me empurrou e por pouco consegui me segurar. Recebi ajuda rapidamente. Não sei bem quem havia feito isso, mas preferi deixar quieto. Essa foi apenas a primeira tentativa de morte. Sim, sofri várias delas enquanto estava ao lado dele. Eu já percebia isso, só não admitia pra mim mesmo. Thales sempre se fazia de bom amigo e até desconversava quando eu entrava no assunto. Ele dominava a arte de enganar e eu estava caindo como um patinho em suas mentiras. A minha mãe chegou a presenciar alguns “atentados” e sempre me alertava sobre a “amizade” dele. Eu não dei ouvidos e prossegui.

 Tudo prosseguia normalmente e eis que o dia do meu aniversário de vinte anos chega. É óbvio que convidei quem eu já tratava como melhor amigo. Esse foi o estopim. Humilhação... Vergonha... Tristeza... Decepção. Nunca me esqueço... Ouvi a pessoa que me chamou de amigo me diminuir na frente de todos os outros. Disse que nunca me considerou um amigo. Um perfeito filho da puta, vão desculpando o palavreado, mas ele merece. Esse cara havia usado da minha amizade para conseguir alguns benefícios que eu podia oferecer, mas que agora eu não era tão útil e por isso eu poderia ser descartado ou ficar na “reserva”. Sanguessuga nojento! Mas a culpa de tudo isso não era só dele. Era minha também. Por que alimentei uma relação tão falsa e fraca durante tanto tempo? Porque simplesmente não dei fim nisso quando já percebi que não era pra ser? Eu estava entrando em depressão e minha mãe se desesperou ao ver meu estado. Estava caindo cada vez mais e mais a caminho do meu fim. Quantas vezes fui destratado por esse canalha e mesmo assim sorria? Quantas vezes recebi o seu desprezo e aguentei calado? E as supostas tentativas de me matar que ele negou todas as vezes? Como ousou me chamar de amigo?

Nos afastamos de vez.  Eu já não fazia mais questão de me envolver com ninguém. Pra quê? Pra ser enganado outra vez? Mas me sentia triste... Eu realmente acreditei que aquilo era uma amizade.

Alguns meses depois, em um dia que parecia comum, vi no jornal logo pela manhã que um estudante da universidade havia desaparecido há alguns dias e nenhuma notícia. Sua mãe mal conseguia falar algo e estava desesperada com o desaparecimento do único filho. Senti uma dor no peito ao ver aquela cena.

 Naquele dia me despedi com um forte abraço e um beijo daquela doce mulher. Mal sabia que tudo mudaria a partir daquele momento. Ao chegar à universidade, entro no banheiro e vejo um recado escrito com sangue no espelho. Dizia: “Leo Cavallini... Você é o último que restava e de hoje não escapa!” É óbvio que me assustei, mesmo não entendendo o que aquele recado queria dizer. Poderia ser um trote, quem sabe. Mas... O pior de tudo foi quando reconheci aquela letra. Ao sair do banheiro dei de cara com o próprio Thales, que me cumprimentou falsamente pra variar. Eu não tirei satisfações de início. Alguns segundos depois e decidi voltar. Abri a porta do banheiro e ele havia desaparecido. Isso mesmo! Algo estava errado naquele lugar. Como pode alguém sumir assim do nada?

Caminhei lentamente e ouvi o som de uma gota caindo. Abri a porta do banheiro de deficientes e vi as pernas de alguém que estava caído no chão. De repente sinto uma forte pancada na cabeça e apago.

Abri os olhos. Não estava mais no banheiro da universidade. Estava amarrado e ao meu redor era possível ver um círculo vermelho desenhado com marcas de sangue formando um símbolo estranho. Algo de ocultismo ou alguma seita maligna, não sei ao certo. Era medonho! Mas a pior visão foi a que vi acima de mim. Seis corpos pendurados. Alguns já estavam num estado nada agradável. Um deles eu reconheci. Foi aí que cheguei a uma conclusão: Eu era o próximo.